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segunda-feira, junho 11, 2012

O pior cego é aquele que não quer ver

Todo primeiro semestre do ano, na Alliance Française, nós temos que fazer uma pequena apresentação oral (para horror dos tímidos e felicidade daqueles que estão loucos para contar alguma coisa em francês pra turma).

No ano passado eu falei sobre os primeiros habitantes da Île-de-France, região onde Paris está localizada, os Parisii.

Neste ano, nossa prof nos pediu para falar sobre algum livro. Eu queria muito falar sobre um livro do Balzac que estou começando a ler (junto com os outros trocentos que estou lendo também): A Duquesa de Langeais. Procurei feito louca esse livro na mediateca da Aliança só pra descobrir que não havia um livro do Balzac chamado "La Duchesse de Langeais"...é...mas daí, uns 3 dias antes da minha apresentação eu descobri que sim, eu havia até manuseado esse livro na mediateca..só que em sua primeira publicação (em 1834) seu nome era outro: "Ne touchez pas la hache" (algo como "não toque o machado").

Enfim, apresentar um livro que usei na minha primeira apresentação na Aliança (em 1998), que foi um horror, já que eu era extremamente tímida: A Sinfonia Pastoral de Andre Gide.

Ultimamente andam falando sobre as ligações do Gide com o nazismo MAS, isso não tem importância agora.


A Sinfonia Pastoral  é um livro um pouco...angustiante. A história em si, se for resumida em poucas palavras não é muito interessante não.
Mas isso é o que é incrível nas histórias: mesmo quando parecem bobas e sem significância, se você olhar bem, você descobre muita coisa...coisas muito interessantes.

Nessa história, um pastor relata, em um diário, acontecimentos que ele viveu uns dois anos antes, quando ele conheceu e trouxe pra casa Gertrude, uma garota cega de quinze anos... mais ou menos a mesma idade do filho mais velho dele : Jacques.

O pastor era casado com Amélie e tinha 5 filhos. Sua esposa não gostou nada quando ele trouxe Gertrude pra casa. Ela já podia antever o que estava para acontecer.

Mas, o que acontece quando um homem, como o pastor e seu filho mais velho se apaixonam por Gertrude?

Coisa boa é que não é!

Ainda mais quando ela, que era cega, recupera a visão depois de uma cirurgia e fica confusa com o que vê e com o que percebe a sua volta.

Mas o pior de tudo é a cegueira do pastor. Ele pode ver, enxergar tudo...mas sua cegueira não é física; é moral mesmo. E quando junta religião no meio...aiiiii...fica tudo muito pior.

Quando Jacques lhe diz que quer se casar com Gertrude, o Pastor fica horrorizado. Pra ele isso é um escândalo, uma imoralidade, um pecado mortal ou sei lá que tipo de pecado pode ser. Pra ele, é como se Jacques tivesse lhe dizendo que queria se casar com a própria irmã.

Mas, seguindo essa linha de pensamento, se a relação entre Jacques e Gertrude fosse incestuosa, qual seria a dele então????

O pior cego é aquele que não quer ver.

O Pastor achava normal, sublime. Ele não conseguia, ou melhor: não queria, ver que o que ele fazia era errado. Ele era casado, tinha cinco filhos e estava apaixonado por uma menina que podia ser sua própria filha??? E isso não era pecado???!!! Mas o amor do Jacques era...

É horrível!!! Ele fica escrevendo sobre esses acontecimentos de forma como se ele estivesse escrevendo um texto que ele iria pregar para os fiéis dele...ele mescla religião com essa loucura, essa obsessão por essa menina...e isso é...nojento! Me desculpem, queridos leitores, mas eu acho nojento.

É como na história de O Corcunda de Notredame (Notre-Dame de Paris de Victor Hugo). Também há esse conflito amor-Deus. Claude Frollo se apaixona por Esmeralda, se sente tentado por ela e vê sua postura religiosa ameaçada por essa paixão e resolve que o melhor a fazer é matar Esmeralda. Assim a tentação acaba. Simples assim.

Esse conflito desejo-religião é o que torna a história angustiante. E essa cegueira é o que torna mais angustiante ainda. O Pastor do Gide não é tão diferente do Frollo do Victor Hugo. São cegos! Cegos de desejo.

É o tipo de cegueira em que o cego se recusa a ver o que está bem diante do nariz! Não adianta mostrar, apontar pro nariz...ele nunca vai ver. Ele não quer ver. Provavelmente porque o desejo é ainda mais forte do que a vontade de ver...não sei.

A Sinfonia Pastoral também me fez lembrar  da apresentação de um dos meus colegas da Aliança. Ele falou sobre um livro de Emmanuel Carrère: La Moustache (O Bigode).

Nesse livro, que também foi adaptado para o cinema, Marc é um homem que tem um bigode e esse bigode é a sua marca registrada.



Um dia, ele resolve tirar o bigode pra ver como fica. Até acha que deve ficar irreconhecível. Só que, depois que ele tira o bigode, ninguém nota diferença. E quando ele menciona que tirou o bigode, todo mundo diz "mas que bigode? Você nunca teve bigode."

E isso vira um tormento na vida dele. Ele via o bigode, mas ninguém via. E isso causava uma angústia enorme pra ele porque ele acreditava que o bigode era sua marca; fazia parte de sua identidade.

E como meu colega mesmo comentou, lá estava a cegueira. O bigode que fica bem embaixo do nariz e não é visto.


Realmente, o pior cego é aquele que não quer ver.